As pessoas que excluem de sua alimentação todo e qualquer produto de origem animal – bem como boicotam produtos, empresas e qualquer atividade que envolvam a exploração animal -, tendo como motivo essencial o respeito para com os animais, o fazem por uma implicação ética - uso o termo “essencial”, pois podem existir outros motivos determinantes para tal atitude. Neste texto, no entanto, pretendo apresentar razões para a questão da alimentação, especificamente. Os demais âmbitos que a questão atinge, ainda que deveras importantes, poderão ser colocados em discussão a partir da reflexão que aqui proponho, ainda que atendo-me apenas aos hábitos de consumo alimentar (uma vez que o cerne da questão é o mesmo). O não-consumo, como manifestação diária (a cada refeição!), representa a discordância em relação ao sofrimento e às privações (inclui-se aqui a privação à própria vida) a que os animais são submetidos no processo de criação e abate, bem como é, também, um protesto contra esta indústria que reduz toda existência animal a produto de exploração e de consumo. Diante do julgamento que afirma injusto e moralmente incorreto todo o processo que envolve este hábito, estamos a tratar de uma questão ética.
Sabemos que o ser humano necessita de alimento para viver e como comumente ouve-se por aí, “não há como viver sem matar”. Sim, infelizmente não há como viver sem matar. Mas há como viver sem causar tanto sofrimento e morte desnecessários; basta dispormos dos resultados das pesquisas científicas, que são de elevada importância, não só quando as verdades descobertas nos são convenientes.
Já que pesquisas científicas comprovam ser suficiente para a nutrição humana (uma vez que renomadas entidades especializadas em pesquisa na área de nutrição já publicaram tais resultados há pelo menos quase duas décadas), já que nós temos alternativas – porque continuarmos financiando este injusto processo de transformação da vida animal em produto? Já que o homem, desde os primórdios, aprendeu a cultivar os frutos da terra, que nos saciam organicamente, porque continuamos submetendo a este processo seres vivos que possuem uma dimensão a ser podada, castrada, reprimida, como ocorre com os animais? As plantas, segundo a sua gênese, por não possuírem dimensões físicas (estruturas) que possibilitariam a sensação, a consciência, a memória associativa e a inteligência prática (não possuem cérebro nem sistema nervoso), - características estas, todas presentes nos animais - não seriam, então, o alimento mais adequado nesta tentativa ávida que o homem perfaz todos os dias e a cada dia mais intensamente, na sua busca por justiça e paz? E ainda que elas apresentem alguma dimensão ainda desconhecida para nós – por exemplo, que venha a se descobrir algum tipo de capacidade sensitiva -, isto não implica que não façamos o que está definitivamente ao nosso alcance. Lembrando que, é muito provável que alguém que se preocupa com os animais (humanos e não-humanos), seja alguém também preocupado com o possível sofrimento de qualquer outro ser vivo. Estranho é alguém que sequer admite a nossa responsabilidade para com os animais – muitas vezes nem com os de sua própria espécie – questionar sobre a nossa responsabilidade para com a vida vegetal. **[a prática do vegetarianismo inclusive colabora com a redução do consumo de vegetais, já que nós comemos consideravelmente menos que os milhares de bovinos e outros animais que são sustentados à base de vegetais para serem abatidos]
A privação de vivência e expressão de afetividade junto à prole, o impedimento de locomover-se no meio ambiente, a castração cruel da relação ativa e livre para com os elementos da natureza... O “procurar” a água para saciar a sede, o alimento para a fome, a demonstração de carinho com os outros seres, a “capacidade” de sofrimento. O que pesa neste momento, cabe dizer, é a incapacidade dos animais de defenderem-se e fazerem valer sua vontade frente ao homem, este animal tão extraordinariamente cheio de habilidades, por meio das quais é capaz de “domesticar” os animais, mas um animal tão extraordinariamente diferente dos outros também, pois que, mesmo tendo racionalidade e poder de escolha (qual é a implicação disto? É um privilégio que temos? Ou uma responsabilidade?), é o único capaz de destruir o seu próprio habitat.
Todo esse aparato de técnicas, teorias e filosofias (no sentido de ideal de vida) que o ser humano cria cada vez mais na sua busca incessante - e nunca tão inquietante como nos dias de hoje, - por uma cura para todos os seus males e para amenizar o sofrimento do animal homem, não o faz pensar no seu equívoco quando julga ter direito de incutir sofrimento assaz e contínuo em outros animais? Ora, quem deseja a paz, deve proporcionar paz, ao passo que, quem não deseja sofrimento a si próprio, não deve impor sofrimento a outrem. Não há efeito superior à causa, da mesma forma que não há como encontrarmos paz, enquanto considerarmos banal o sofrimento alheio. Quero enfatizar aqui: proponho que todos nós devemos nos esforçar para que seja dado início a um questionamento em relação ao que, até então, era dado por inquestionável. Precisamos despertar, uns aos outros, deste sono dogmático que por vezes toma conta de uma sociedade inteira em relação à determinada questão. Há quem um dia achou moralmente correto escravizar seres humanos por distinção de raça (recusando-se a admitir o fato de que a raça x fosse capaz de sofrimento como qualquer outra). Mas graças à transformação progressiva do pensamento humano e um constante questionamento da realidade, formas ultrapassadas – e equivocadas - de compreensão do mundo e da nossa sociedade vão sendo deixadas para trás.
O homem, por ser capaz de produzir cultura e conhecimento, de tempos em tempos deve empreender o processo de rever, questionar e reconstruir aperfeiçoando as verdades e os valores constitutivos da sua visão de mundo, pois que regem seu comportamento nas relações com os outros seres vivos e para com o planeta. A este “movimento” que o homem deve fazer na tentativa de uma transcendência de si mesmo, a esta superação de valores repensados que caem por terra, ouso chamar de evolução, no sentido ético que é possível atribuir ao termo.
* Este texto foi escrito e publicado no jornal O Timoneiro (Canoas) e no site Sítio Vegetariano em 2006. Recentemente atualizado com alguns dados, como os citados abaixo.
** De 2000 para cá, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de cabeças de gado saltou de 170 milhões para aproximadamente 206 milhões – incremento de 21% [contra cerca de 192 milhões de habitantes humanos no país - estimativa do IBGE, 2010]. De acordo com o estudo “O Reino do Gado”, divulgado pela ONG Amigos da Terra no ano passado, a Amazônia conta com 74 milhões de cabeças de gado, na proporção de 3,3 por habitante – relação três vezes superior à média nacional.