segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Com certeza eu sabia o que se passava com o mundo. E como haveria de não saber?! Eu enfrentava aquilo todos os dias. O difícil amanhecer. A entediante tarde. O melancólico anoitecer. Lindas e escuras noites estreladas, nas quais o desejo de voar era quase mortal. Eu sabia sim. Há bons anos lidando com esta coisa toda de viver, de uma forma nada simples, em desacordo com as tantas mulheres vítimas concordantes do machismo, nos tantos e infelizes lares ao redor do mundo, contentes por seu definido papel na sociedade. Eu tinha de catar folhas ao vento na tentativa de descobrir quais eram minhas cenas e falas. Não foi fácil ser a mulher do século XXI conforme haviam prometido. Na realidade, o mesmo projeto de homem bem sucedido, porém oportunamente atrasado, que deve crescer profissionalmente e ser um bom exemplo para as crianças – estando também exposta às tantas tentações dos vícios e do erro -, sem cometer a deselegância de esquecer-se de seu papel fundamental na manutenção da teatral e nova face da modernidade: o machismo velado, bem representado principalmente por mulheres
bem femininas. Mais triste e lamentável do que o original.
Mas minhas estradas nem sempre foram complicadas. E até este exato momento, já temerosa
dos primeiros cabelos brancos e gozando de confortável complacência com o passado, vejo que de nada me arrependo oficialmente. Entendo isso como sucesso. Mesmo tendo plena consciência das incontáveis e magníficas chances que perdi, correndo pelas ruas à procura de um banco para descansar, sempre exausta das tantas andarias na tentativa me encaixar como um tijolo das pirâmides do Egito, perfeitamente adaptados sem uso de cimento, neste mentecapto globo coberto por terra. É claro demais que essa perturbação constante fez de mim alguém sem norte, ao menos no que dizia respeito à visão de mundo que eu tinha. Vez em quando, eu deitava para dormir medrosa por conta destes desacertos que eu considerava puramente ópticos – pois, no mais, e mesmo aos trancos e barrancos, eu aceitava bem as intempéries e aprendia muito com tudo que conseguia captar -, que não me permitiram enxergar oportunidades, aos montes por aí, de provar que as coisas não eram bem assim. Então, ali, no escuro, eu refazia meus passos. Num toque fácil e acessível à mente, recobrava imagens registradas no inconsciente, e vasculhava cada canto. Às vezes, encontrava algo antes despercebido e resgatava. Nessa atmosfera lúgubre que criei para mim, há sempre esta alternativa viva e latejante. Acho que um dia cansarei de tentar consertar os caminhos percorridos. Mas não sei. Algo se agiganta de uma forma dentro de mim, que não posso evitar minhas fantasias. Ainda bem. Guardo forças para os momentos de desgraça que ainda virão... Num cantinho secreto das emoções, cujo endereço até mesmo eu desconheço por motivos de segurança. Quase impossível de ser tocado. De caráter abstrato e fugaz.
(...)
Eu que até ontem flutuei pelas estradas tortuosas com Kerouac, e naveguei pelas terras quentes e afofadas por palavras doces de Fernando Pessoa, em noites embriagantes de tanto amor... mergulhada em cativantes ondas de neve nos contos de José Condé, e enfeitiçada até às cutículas pelas lúdicas mentiras de Ariano Suassuna e uma porção família de outros, agora experimentava algo parecido com nostalgia ao ler, ao som da chuva da tarde que se prepara para partir, O livro
da Solidão, de Cecília Meireles, a um moribundo derrotado encantador. Era como ler um último livro. Não eu. Mas eu naquele mundo. Num mundo no qual aquelas pessoas todas com quem convivia – mesmo as milhares das quais eu nem tinha conhecimento – estavam registradas em minha consciência, sabidas por mim vivas ou mortas. Naquele dia, semana, ano, década. Ali. Ler pela última vez com o perfume de jasmim servindo de papel de parede para minha estória concretizada em mentalização. Dei uma pausa, olhei o soro que pingava lentamente, e desci para um café. Ele pareceu me incentivar com os olhos marejados, acompanhando meus passos pela quieta sala. Estávamos no último andar do hospital que, àquela hora da noite, em um sábado quente de verão, estava o mais vazio possível. O fim de ano se aproximava, para mim, não para Max. Um novo e pesado piscar de olhos e flash’s me trouxeram ele novamente, que apesar de toda aparente valentia, me demonstrava o medo de quem também sentira na pele os efeitos desastrosos da ideologia coletiva de quem devia não só dominar socialmente as mulheres, mas sim o mundo. Numa postura decorada firme, seu rijo sentar e sorrir nada puderam disfarçar a doçura que seus olhos entregavam de bandeja.

(Trechos do livro Sinceras desculpas - de Simone Dutra -, ainda em fase de produção)


terça-feira, 15 de novembro de 2011

A Grande Faxina

Hoje institui o meu dia oficial da vergonha na cara. Tirei o pó de antigas gavetas, de estantes esquecidas, dos bons e velhos livros – sempre me deixando um grande pingo de culpa por lembrar que ainda não foram lidos - e da minha escrivaninha, há tanto tempo parada, me esperando. Limpei delicada e cuidadosamente mesmo aqueles cantinhos que sempre deixamos para depois, em virtude da dificuldade de acessá-los.

Eu, que nunca quis ir tão longe, apenas o suficiente para satisfazer os olhos, com paisagens novas e para mim ainda secretas, hoje fiz uma viagem do tipo que ainda não é possível – as minhas provas são tão palpáveis quanto o lugar visitado. Tudo começou num estado de emergência. Eu, inundada por todas as noites enluaradas que eu perdi, transbordando todos os raios de sol que aquela casa impedia de entrar, adentrei, descortinando o nosso grande casulo, para que o pulmão, já sufocado, pudesse sentir um pouco de ar. Me certifiquei da antiga certeza de que as janelas nunca se fecharam bem... as portas tampouco. As paredes, o assoalho e todas as marcas no teto, seguiam lenta mas intensamente o caminho da ruína. Visitei cada cômodo inundado dos meus e dos teus destroços e, embalada por uma melodia dançante - daquelas que nos animam a fazer uma grande faxina - , ouvi os nossos passos estremecendo o velho chão de madeira. Rasguei em mil pedacinhos velhos fantasmas, visões deturpadas de mundos criados por uma criança sem norte – e qual haveria de ter? (Num mundo onde adultos procuram na ilusão o lugar mais firme para se apoiar, como uma criança, ainda sem um poder de abstração – e de auto-enganação - tal, poderia sentir aquela casa como um verdadeiro lar?) E não é que as minhas lindas bonecas ainda estavam lá? O cesto de frutas que colhemos naquela tarde também...

Guardei o que ainda parecia ter vida, por mais duvidoso que parecesse. E, para celebrar o final da visita, a festiva despedida de um mundo longínquo, vi todos os seus desenhos perdidos, amarelados e carcomidos pelo tempo e, ainda que com um pouco de dó, pela beleza que deles emanava, ateei fogo um a um, calma e conscientemente, em homenagem a tudo o que você planejou. Demorei para entender que todos os copos quebrados e lençóis manchados não precisavam decorar, feito quadros pendurados para todos os lados, o meu novo lar.

Eu, que nunca esperei por grandes mudanças, tive certeza de que só depois de botar de molho cada uma das pequenas lembranças - e daí só tirá-las quando a cor tivesse voltado ao seu natural -, de quebrar antigos santos e deuses, orações e ídolos que só existiam na mente do desespero, de libertar todo o meu corpo das amarras colocadas por mim mesma, apenas depois disso, eu poderia voltar a brincar de sonhar.

Se eu fiz questão de encarnar um papel que não era meu, hoje oficialmente peço demissão do cargo, com a total consciência de que até hoje eu vim sendo uma atriz medíocre, que não interpretava nem a si, nem a ti, mas a todas as criações de uma mente infantil. Dando corpo e um pouco de alma a uma réplica barata do passado, empoeirada, insossa e ultrapassada, como os restos de um antigo e melancólico cinema dos anos 30. Festas lá aconteceram, muito se chorou e muito se riu. Mas acabou. Acabou.

Antes de terminar a faxina, apenas para me certificar, olhei com muito cuidado embaixo da cama, para ter certeza de que nenhum resquício ficou. Surpreendentemente, de tanto e de tudo aquilo, que há pouco tempo parecia cada vez mais se agigantar, nada restou. Planos, projetos, projeções de novos mundos, tudo aquilo que dizem pertencer ao humano mais humano de mim, agora decoram nossa nova casa.

E o sol quente e forte – mas ainda agradável - de um verão de 93 voltou a brilhar, aquecendo todos os cantos, antes escuros, ora dourados, como o verão que está para chegar.