Sempre
gostei de sentir o ar da noite. De andar furtivamente pelas ruas
quando apenas se ouve alguns poucos passos apressados de moças
voltando para casa. Sei que são moças, pois o barulho é de sapato
de salto batendo nas pedras da calçada. Aliás, sempre achei esse
barulho gostoso. A pressa, vem, além do cansaço, do medo de andar
pelas ruas desertas. Eu não sinto. Meu coração bate leve e sereno,
acalmado pelo ar fresco da noite. As sombras, efeito da luz dos
poucos postes, são como pintadas à mão. Posso ver nos detalhes até
os pequenos borrões que ficam quando se tira a ponta do lápis preto
do papel, ao acabar um traço. Um traço não muito preciso, um traço
à vontade, despreocupado de qualquer precisão ou perfeição. Daqui
vem a naturalidade das sombras noturnas. As luzes do céu pouco
iluminam, não é mesmo essa sua função. As luzes do céu cintilam
no céu, e apenas abrem caminho para novos pensamentos, novas
sensações, agora descansadas do dia, resfriadas do calor sufocante,
dos passos ofegantes e preocupados, das obrigações e horas
marcadas. Eu ando. Penso no meu antigo e persistente desejo de ser
uma espécie de ser alado, que pode participar da vida humana de
longe, do alto de uma colina flutuante, talvez feita de algodão
branco (mas gosto muito também dos algodões coloridos). Às vezes
eu ficava horas imaginando como bom seria estar presente e, ao mesmo
tempo, ausente o suficiente para não causar o mal estar que muitas
vezes passo para as pessoas. Mais do que isso, de longe eu poderia
ver o todo, que eu sempre quis enxergar. Ando mais um pouco. Agora
faz um pouco de frio. Mas é um frio que traz desejo de conforto, bom
para quem tem uma cama com lençóis perfumados e macios. [Tento
esquecer que muitos não têm]. Sempre gostei de acreditar em fadas,
elfos e duendes. Acredito que eles apareçam nos lugares e momentos
em que a presença humana se ausenta. Imagino o parque, perto de
casa, repleto deles, gargalhando em meio às danças, em meio às
flores cálidas de verão. Seguindo reto pela minha rua, me aproximo
do parque, e fico imaginando que, lamentavelmente, cada passo para
frente é um minuto a menos de dança e de risos entre os seres
mágicos. Pior do que isso, por minha culpa. Mas eu tenho uma
esperança tímida e infantil de que, talvez, eu possa ser um deles.
Não pura, não nascida e cultivada em essência entre eles. Talvez
uma mistura entre o real e o imaginário, entre a doçura do caramelo
e o amargo do sangue inocente derramado, entre o perfume dos lírios e o cheiro
sufocante da poluição. Eu brinco de trancar meu passo, de demorar
um pouco mais, fazendo caminhos tortuosos por entre os canteiros da
calçada. Passa um caminhão barulhento. Até meus pensamentos se
afastam. As fadas não poderiam estar nesses canteiros, o que me dá
pena das folhas e flores que ali estão. Elas são usadas para
enfeitar a calçada suja e barulhenta, mas deveriam ser o abrigo para
os seres mágicos. Quero deixar claro que ser “mágico” não
necessariamente significa uma espécie de capacidade para transformar
coisas em outras ou fazê-las desaparecerem. A magia está na forma
como sorriem suave, como os olhos sorriem com a boca, como os braços
e todo o corpo dançam embalados pela imensidão desértica do perigo
humano. Suas orelhas compridas fazem uma concha que lhes permitem
ouvir a música dos ventos e das brisas mais leves, os cantos doces
e fortes das aves e, aquilo que um humano talvez nem possa conceber –
desconfio, aqui, não ser puramente humana -: sentem, em seus
ouvidos, as vibrações de uma música num volume bem baixinho, feita
com a alma de mil estrelas, onde o som se confunde com a luz. Onde o
brilho se mistura com o tilintar. As cigarras sibilam algo parecido,
mas muito mais forte. Essa música não, ela é tão sútil quanto a
cor alaranjada do céu quando faltam apenas alguns milésimos de
segundo para o sol se guardar. Ela nunca cessa, não há razão para
parar, pois nada humano está à espreita para interromper; sem
capacidade para conceber, ela está a salvo de que alguém queira
fazê-la parar. Chego cada vez mais perto do parque, tenho alguns
calafrios. Quero muito fazer parte, quero ouvir o som que, por
enquanto, apenas concebo. O tic tac dos relógios cessam, meu coração
quase para: de longe, vejo folhas grandes se curvando. A areia da
trilha tem um brilho dourado a essa hora. Algumas pombas parecem
acompanhar pequenos movimentos no canteiro lateral. Minha respiração
diminui. Nem nos meus sonhos mais livres imaginei dançar a dança
dos tempos, ouvir o som das eras, sentir os mantras de uma vida que
se oculta no verde puro e profundo... Molho a ponta dos pés no lago
azul marinho. Não existe sensação refrescante maior do que aquela
que só é possível quando estamos livres para sentir com todos os
sentidos, quando a água e o vento se misturam e fazem cócegas no
meio dos dedos. Eu quis aquela noite, eu acreditei. A última coisa
da qual tenho lembrança, foi a visão de asinhas acetinadas pousando
nas velhas pedras do lago.