quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Nocturnus


Sempre gostei de sentir o ar da noite. De andar furtivamente pelas ruas quando apenas se ouve alguns poucos passos apressados de moças voltando para casa. Sei que são moças, pois o barulho é de sapato de salto batendo nas pedras da calçada. Aliás, sempre achei esse barulho gostoso. A pressa, vem, além do cansaço, do medo de andar pelas ruas desertas. Eu não sinto. Meu coração bate leve e sereno, acalmado pelo ar fresco da noite. As sombras, efeito da luz dos poucos postes, são como pintadas à mão. Posso ver nos detalhes até os pequenos borrões que ficam quando se tira a ponta do lápis preto do papel, ao acabar um traço. Um traço não muito preciso, um traço à vontade, despreocupado de qualquer precisão ou perfeição. Daqui vem a naturalidade das sombras noturnas. As luzes do céu pouco iluminam, não é mesmo essa sua função. As luzes do céu cintilam no céu, e apenas abrem caminho para novos pensamentos, novas sensações, agora descansadas do dia, resfriadas do calor sufocante, dos passos ofegantes e preocupados, das obrigações e horas marcadas. Eu ando. Penso no meu antigo e persistente desejo de ser uma espécie de ser alado, que pode participar da vida humana de longe, do alto de uma colina flutuante, talvez feita de algodão branco (mas gosto muito também dos algodões coloridos). Às vezes eu ficava horas imaginando como bom seria estar presente e, ao mesmo tempo, ausente o suficiente para não causar o mal estar que muitas vezes passo para as pessoas. Mais do que isso, de longe eu poderia ver o todo, que eu sempre quis enxergar. Ando mais um pouco. Agora faz um pouco de frio. Mas é um frio que traz desejo de conforto, bom para quem tem uma cama com lençóis perfumados e macios. [Tento esquecer que muitos não têm]. Sempre gostei de acreditar em fadas, elfos e duendes. Acredito que eles apareçam nos lugares e momentos em que a presença humana se ausenta. Imagino o parque, perto de casa, repleto deles, gargalhando em meio às danças, em meio às flores cálidas de verão. Seguindo reto pela minha rua, me aproximo do parque, e fico imaginando que, lamentavelmente, cada passo para frente é um minuto a menos de dança e de risos entre os seres mágicos. Pior do que isso, por minha culpa. Mas eu tenho uma esperança tímida e infantil de que, talvez, eu possa ser um deles. Não pura, não nascida e cultivada em essência entre eles. Talvez uma mistura entre o real e o imaginário, entre a doçura do caramelo e o amargo do sangue inocente derramado, entre o perfume dos lírios e o cheiro sufocante da poluição. Eu brinco de trancar meu passo, de demorar um pouco mais, fazendo caminhos tortuosos por entre os canteiros da calçada. Passa um caminhão barulhento. Até meus pensamentos se afastam. As fadas não poderiam estar nesses canteiros, o que me dá pena das folhas e flores que ali estão. Elas são usadas para enfeitar a calçada suja e barulhenta, mas deveriam ser o abrigo para os seres mágicos. Quero deixar claro que ser “mágico” não necessariamente significa uma espécie de capacidade para transformar coisas em outras ou fazê-las desaparecerem. A magia está na forma como sorriem suave, como os olhos sorriem com a boca, como os braços e todo o corpo dançam embalados pela imensidão desértica do perigo humano. Suas orelhas compridas fazem uma concha que lhes permitem ouvir a música dos ventos e das brisas mais leves, os cantos doces e fortes das aves e, aquilo que um humano talvez nem possa conceber – desconfio, aqui, não ser puramente humana -: sentem, em seus ouvidos, as vibrações de uma música num volume bem baixinho, feita com a alma de mil estrelas, onde o som se confunde com a luz. Onde o brilho se mistura com o tilintar. As cigarras sibilam algo parecido, mas muito mais forte. Essa música não, ela é tão sútil quanto a cor alaranjada do céu quando faltam apenas alguns milésimos de segundo para o sol se guardar. Ela nunca cessa, não há razão para parar, pois nada humano está à espreita para interromper; sem capacidade para conceber, ela está a salvo de que alguém queira fazê-la parar. Chego cada vez mais perto do parque, tenho alguns calafrios. Quero muito fazer parte, quero ouvir o som que, por enquanto, apenas concebo. O tic tac dos relógios cessam, meu coração quase para: de longe, vejo folhas grandes se curvando. A areia da trilha tem um brilho dourado a essa hora. Algumas pombas parecem acompanhar pequenos movimentos no canteiro lateral. Minha respiração diminui. Nem nos meus sonhos mais livres imaginei dançar a dança dos tempos, ouvir o som das eras, sentir os mantras de uma vida que se oculta no verde puro e profundo... Molho a ponta dos pés no lago azul marinho. Não existe sensação refrescante maior do que aquela que só é possível quando estamos livres para sentir com todos os sentidos, quando a água e o vento se misturam e fazem cócegas no meio dos dedos. Eu quis aquela noite, eu acreditei. A última coisa da qual tenho lembrança, foi a visão de asinhas acetinadas pousando nas velhas pedras do lago.

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